Autismo: Noção de perigo e linguagem ao pé da letra
- Pandorga Formação Autismo
- 17 de jan.
- 4 min de leitura
Pessoas autistas têm um estilo cognitivo diferente. Isso significa que elas pensam de um modo diferente do de outras pessoas. Já falamos sobre isso em outros artigos, e neste texto você vai entender outras duas facetas deste modo diferente de pensar:
1. pessoas com autismo não têm uma boa noção de perigo;
2. pessoas com autismo em geral tomam a linguagem ao pé da letra.

Autismo: Noção de perigo e linguagem ao pé da letra
Ter noção de perigo e fazer avaliação de risco
Autistas podem não ter noção de perigo, e isso, às vezes, é um enorme problema. Elas podem, inclusive, se colocar em risco de vida.
Ao contrário, pessoas neurotípicas, quando nascem, já vêm com noção de perigo e avaliação de risco embutidas instintivamente.
Imagine uma cena bastante comum. Um casal sai para uma caminhada no final da tarde; a certa altura vem ao seu encontro, uma mulher jovem, empurrando um carrinho de bebê, e, dentro do carrinho, uma criança que tem por volta de um ano de idade. A criança no carrinho olha firme para a frente. O casal para a alguns metros do carrinho, e a mulher para também. Mantendo uma certa distância, o casal tenta engajar a criança numa interação: ele acena e sorri, ela fala alguma coisa. O bebê fica impassível, olhando fixamente para o casal. Ele não sorri e não faz nenhum gesto receptivo.
O casal insiste. Acena mais um pouco, conversa, sorri para a criança. E o que o bebê faz? Se vira para trás e olha para a mãe. A mãe responde com um sorriso e um aceno positivo da cabeça. O bebê se volta novamente para o casal e então abre um largo sorriso!
O que aconteceu?
O bebê fez o que chamamos de avaliação de risco. A abordagem do casal parecia simpática e inofensiva, mas ele não tinha certeza e não sabia como reagir. Primeiro ele esperou para ver o que aconteceria. Com a insistência do casal, resolveu recorrer à ajuda da mãe – a pessoa, nesta altura da vida, que resolve todos os seus problemas e dúvidas. Como a mãe reagiu positivamente, ele se sentiu autorizado a interagir com o casal.
Um bebê que ainda não fala e não tem autonomia nenhuma, já tem noção de perigo e faz uma avaliação de risco: ele procura se certificar de que aquela situação não é perigosa e só então interage. Esta criança não é autista.
Não ter noção de perigo

Ros Blackburn, uma palestrante internacional autista, não veio ao mundo equipada com noção de perigo e avaliação de risco. E, além disso, ela tem uma irresistível fascinação por escadas. Se ela está caminhando na rua e vê uma escada na calçada oposta, nenhuma avaliação de risco é acionada no cérebro dela: ela simplesmente atravessa a rua. E Ros, de fato, já foi atropelada mais de uma vez.
Outro exemplo: uma adolescente autista morava no centro de uma cidade e era apanhada todos os dias, a uma certa hora, por uma van escolar. Certa vez, ela se atrasou, a van não esperou, e a garota só conseguiu ver a van desaparecer em meio ao trânsito da avenida movimentada. Sem nenhuma noção do perigo da sua ação, ela começou a correr desabaladamente por entre os carros para tentar alcançar a van.
Avaliação de risco e noção de perigo são recursos essenciais de sobrevivência que as pessoas autistas não trazem consigo instintivamente, mas que se pode ensinar em casa, na escola e em atividades de lazer.
Este assunto é abordado no curso 2 da Série Rita Jordan – Prover apoio a áreas básicas de dificuldades e diferenças (módulo 2, aula 3).
Tomar a linguagem ao pé da letra
Outro aspecto do modo diferente de pensar das pessoas com autismo é o fato de elas tomarem a linguagem ao pé da letra. Por isso, muitas delas têm dificuldades para entender piadas, segundas intenções e metáforas.
Se alguém contar que, numa festa, havia um ótimo contador de piadas e as pessoas morriam de rir das histórias dele, é bem possível que a pessoa autista pense que as pessoas realmente morreram. E vai ficar muito preocupada com essa situação, não vai entender como é que se permite que essa pessoa continue contando piadas e pode ser que fique com medo de encontrá-lo por acaso algum dia.
Autistas também não entendem subentendidos. Imagine um pai deitado debaixo do carro, tentando consertar alguma coisa. Seu filho autista está parado ao lado, observando. Aí o pai diz: “Vou precisar da chave de fenda... Por favor, Gustavo, vai lá na garagem e vê se a chave de fenda está lá.” O menino vai até a garagem, volta em seguida e diz: “ Sim, pai, está lá.” A resposta está perfeita. Mas, na fala do pai, havia algo mais; ele também queria dizer: “se estiver lá, traz a chave de fenda pra mim”. O menino não captou a parte da mensagem que não foi dita.
Uma especialista que faz treinamento de convivência social para autistas conta que, depois de muitas idas e vindas, um rapaz autista finalmente conseguiu convidar uma moça para jantar. Deu tudo certo; os dois se entenderam bem. Depois da janta, o rapaz acompanhou a moça até a entrada do prédio dela e ela perguntou: “Você não quer subir para tomar um café?” E qual foi a resposta dele? “Não, obrigado, eu não gosto de café”! É claro que ela subentendia outra coisa, mas o rapaz não entendeu o que, de fato, estava por trás na proposta dela. Ele tomou a linguagem ao pé da letra e teve um prejuízo social considerável. Não se sabe se ela deu mais uma chance a ele.
Neste outro exemplo o professor diz para seu aluno: “Marcos, você pode fechar a janela?”. Marcos responde “sim” e não faz nada. Ele não é mal-educado: respondeu exatamente ao que foi perguntado. Mas na fala do professor havia uma ordem subentendida. O professor queria, de fato, dizer: “Marcos, fecha a janela.” Se eu pergunto: ”Pode me passar o sal?”, estou na verdade dizendo: “Me passa o sal”. Mas autistas não entendem assim.
Essa rigidez de pensamento, esse tomar a linguagem ao pé da letra, pode criar bloqueios de comunicação bem complicados para os nossos autistas. E nós, que sabemos disso, podemos e devemos colaborar. Você que convive com eles, você que é familiar ou amigo ou educador de autistas, adote um princípio: sempre diga a eles exatamente aquilo que você de fato quer dizer.
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