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Autismo e o foco no detalhe

Foto do escritor: Pandorga Formação AutismoPandorga Formação Autismo

Pessoas autistas pensam de uma maneira diferente das pessoas neurotípicas e neste artigo vamos falar de uma das características desse modo diferente de pensar: o foco no detalhe e o caos que isso acarreta.  Para quem convive ou trabalha com elas, é muito importante entender essa realidade.

Autismo e o foco no detalhe. Entenda como o foco no detalhe interfere na percepção das pessoas com autismo. Foto: Olho de uma mulher

Autismo e o foco no detalhe

Uma das características mais marcantes do autismo é o foco nos detalhes; e se um a pessoa foca exageradamente nos detalhes, ela acaba não percebendo o contexto geral.

Esse déficit − ou cegueira contextual, como também pode ser chamado − tem consequências mais ou menos inofensivas, dependendo da situação.


Digamos que está acontecendo uma palestra no auditório do colégio da cidade e o auditório está lotado. Um jovem com autismo, com hiperfoco em cartazes de filmes, está passando na calçada e repara, lá dentro, num cartaz afixado ao lado da entrada do auditório. Ele fica curioso e resolve dar uma olhada para ver que cartaz é aquele. Fica um pouco decepcionado porque não é um cartaz de filme, mas a atenção dele é imediatamente atraída para outras coisas.

Ele observa que a cortina que cobre a entrada do auditório é vermelha. Ouve um barulho abafado de voz ao microfone bastante desagradável – e não entende nenhuma palavra do que é dito. Olha para dentro e vê um corredor ladeado de cadeiras. Também repara que há muitas pessoas sentadas olhando todas na mesma direção. Quase no mesmo instante, vê o cabelo verde de uma pessoa que se levanta à sua direita. Do cabelo verde o olhar vai para a alça dourada da bolsa da mulher que está sentada um pouco à frente e da alça da bolsa vai para uma mão que está coçando um tornozelo. Aí também nota que o cadarço do tênis está desamarrado e, em seguida, que há uma folha de papel no chão. Ele tem o impulso de ir juntá-la porque ali não é o lugar dela, mas como aquele ruído de voz distorcida ao microfone começa a ficar muito incômodo, se vira e volta para a rua.

Se alguém lhe perguntasse o que estava acontecendo lá dentro, ele falaria sobre o cabelo verde, a alça da bolsa e os outros detalhes, mas não saberia dizer que ali estava acontecendo uma palestra, que todas aquelas pessoas estavam olhando para o palestrante e prestando atenção naquela voz que saía do microfone. Ele reparou em vários detalhes, mas não percebeu o contexto, o todo.


Um caos ameaçador

A situação do jovem na palestra foi inofensiva, sem maiores consequências para aquele rapaz. Ele entrou lá por vontade própria, ninguém o forçou a ficar, e ele pôde sair quando quis. Neste caso, focar-se nos detalhes e não entender o contexto não causou nenhum problema. Mas, há situações em que as consequências podem ser bem mais importantes.


Therese Jolliffe é uma autora autista bastante conhecida. Ela sabe muito bem que essa experiência de focar exageradamente no detalhe e não compreender o todo pode ser muito traumática. Ela diz que, para uma pessoa autista, “a realidade é uma massa confusa de eventos, pessoas, lugares, sons e cenas interagindo entre si. Parece não haver limites, ordem ou significados claros para nada.”


Leia mais uma vez: não é uma descrição perfeita de caos?


Criança chegando na escola

Agora pense numa criança de 6 ou 7 anos de idade que vai ingressar em uma nova escola. Para qualquer criança, esta é uma situação tensa, porque é um lugar desconhecido com pessoas desconhecidas. Mas a mãe explica para ela que está tudo bem, que ela vai ter uma professora, vai ter coleguinhas da mesma idade dela, que eles vão se conhecer, vão fazer atividades juntos e quando der o sinal para o final da aula, ao meio-dia, a mãe vai estar esperando para levá-la para casa. Mesmo que seja uma experiência totalmente nova, esta criança já entende muitas coisas que a ajudam a lidar com a situação.

Ela entende que a mãe sabe o que está acontecendo, consegue detectar quem são os adultos a quem recorrer caso tenha algum problema, consegue perceber quem são as crianças que tem a mesma idade que ela, e ela também já repara que há estudantes mais velhos e que com alguns desses é melhor ter cuidado.

Além disso, ela entende que há uma sequência de acontecimentos − uma coisa acontece depois da outra e, no final, a mãe estará de volta para buscá-la − e ela também compreende o espaço, consegue ter uma visão geral da escola e é capaz de se localizar em relação à entrada, ao pátio, à sua sala de aula etc.

Mas a criança de quem estamos falando é autista. E uma escola, principalmente no primeiro dia de aula, é uma grande confusão. A mãe diz a ela que não precisa se preocupar, que vai dar tudo certo, mas a criança não entende o significado dessas palavras, não entende do que a mãe está falando. Ela chega lá e só vê uma profusão de informações que não se conectam. Há um mar de pessoas estranhas fazendo coisas que parecem não fazer sentido. Há paredes, corredores, escadas, janelas e portas que não sabe onde vão dar. Há barulhos, cheiros, movimentos, deslocamentos e um vaivém de gente esbarrando nela. Algumas pessoas falam com ela, mas ela não entende o que dizem, é apenas mais ruído. Alguém a pega pela mão, e ela vai junto sem conseguir colocar nenhuma ordem no que está acontecendo.  Com o coração a mil, ela vai, relutante, e se pergunta: e agora, para onde estão me levando?, para fazer o quê?, o que vão querer de mim?, quando é que eu vou voltar pra casa?, será que eu vou ver a minha mãe de novo?

 

Para a pessoa com autismo qualquer situação desconhecida, pode ser sentida como uma ameaça caótica, que uma outra autora autista descreve assim:

Para mim, o mundo exterior é um caos violento, totalmente desconcertante e incompreensível que me apavora. É uma massa sem sentido de cenas e sons, ruídos e movimentos, vindo de nenhum lugar e indo para lugar nenhum.


Como ajudar

Por que isso acontece? Como a pessoa foca nos detalhes, a visão que ela tem da situação é toda fragmentada e ela tem dificuldade para conectar esses fragmentos e criar uma visão geral da situação.

Familiares, educadores e terapeutas precisam levar essa realidade em consideração e ajudar a pessoa com autismo a construir um imagem mais nítida e organizada do contexto para que ela possa compreender o que está acontecendo ao seu redor. Como se pode fazer isso?


1) Qualquer mudança para uma nova situação precisa ser muito bem preparada.

Se não for assim, o que vai se apresentar para a pessoa é o caos incompreensível e ameaçador que já descrevemos.

Como preparar para uma situação desconhecida? Explicando com antecedência e com a maior precisão possível o que vai acontecer e eliminando ao máximo as surpresas e imprevistos.

Use fotos e vídeos para mostrar novos espaços e novas pessoas. Se possível, faça visitas preparatórias. Use todos os recursos possíveis para antecipar e passar segurança e tranquilidade. E, muito importante, diga quando vai terminar e o que vai acontecer depois. A pessoa precisa saber que, seja lá o que vier, não vai ser para sempre.

Por exemplo, se a criança vai para uma escola nova, visite a escola antes do início do ano letivo para que a criança tenha tempo de entender o espaço antes que ele se encha de gente. Permita que a criança conheça a professora com antecedência, que veja a sala de aula onde vai estudar. Mostre onde é o banheiro. Percorra com ela os caminhos que ela precisa fazer para ir de um lugar a outro, que ela ouça o barulho da sineta e entenda o que ele significa.


2) Exercite, sempre que possível, transições e a experiência de novas situações.

Exponha o autista a toda variedade possível de situações desconhecidas sempre que aparecer uma oportunidade. E mais que isso, crie oportunidades para que isso aconteça. Com afeto, com cuidado, mas com determinação e constância.

É muito melhor que ele aprenda a vivenciar esse tipo de situação quando estiver com pessoas conhecidas em quem ele confia. Leve a pessoa com autismo a parquinhos, passeios, trilhas, lojas, igrejas, jogos de futebol, mercados, farmácias, ruas, avenidas, bairros e cidades que ela nunca viu. É muito provável que não seja fácil no início. É bem possível que crises aconteçam, já que é quase impossível eliminar todos os imprevistos de uma situação. Mas no longo prazo, essa prática vai tornar a vida da pessoa autista e da sua família bem mais tranquila.


Fique atento ao próximo artigo.


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