Neste artigo vamos abordar uma dificuldade básica que ocorre no autismo e que afeta de modo profundo as interações sociais. Já falamos sobre interações sociais no autismo num texto anterior onde vimos que, quando nascem, as pessoas autistas não vêm “programadas” com o código social. Por isso, elas não aprendem a observar o rosto de outras pessoas desde os primeiros dias de vida, quando começam a ler o rosto da mãe enquanto mamam.
Dificuldades com a linguagem e a interação social
Uma das consequências óbvias é que não ser capaz de ler pessoas dificulta o relacionamento das pessoas autistas com os outros. Porém, essa não é a única barreira enfrentada por elas no que se refere às interações sociais. Outras dificuldades podem se somar a esta para dificultar ainda mais essas interações, e uma delas é a dificuldade no uso da linguagem.
Não conseguir acessar as palavras certas
Naoki Higashida, autista e autor de um importante livro sobre autismo, de quem já falamos em outros artigos, explica suas dificuldades com o uso da linguagem.
Uma das questões que Naoki aborda no seu livro é por que ele demora tanto para responder. Ele explica que essa demora não tem a ver necessariamente com a não compreensão da pergunta. O que acontece, em geral, é que quando chega a vez dele de falar, a resposta que tinha elaborado já desapareceu da sua mente. Ele também comenta que a maneira como as pessoas típicas falam parece mágica, porque elas levam apenas uma fração de segundo para pensar e dizer o que pensaram!
Outra pergunta que fizeram a Naoki foi por que ele fala de um modo tão peculiar. E ele responde que as palavras que ele quer dizer e aquelas que ele consegue dizer nem sempre coincidem:
Quando existe uma discrepância entre o que penso e o que digo é porque as palavras que saem da minha boca são as únicas que consigo acessar naquele momento. Essas palavras estão disponíveis ou porque eu as uso sempre ou porque deixaram uma forte impressão em mim em algum momento no passado.
Ou seja, para as pessoas autistas essa comunicação não funciona como para pessoas típicas que podem escolher o que vão dizer em tempo real, enquanto estão falando.
Outro aspecto que ele aborda é a entonação estranha que as pessoas autistas têm quando leem em voz alta. Ele explica que o ato de ler, em si, exige muito esforço porque a “simples” tarefa de ordenar as palavras e dizê-las em voz alta já é extremamente cansativa. Além disso, pessoas autistas não conseguem ler uma história e imaginá-la ao mesmo tempo.
Observe que ele não é indiferente a essas dificuldades:
Há muito tempo venho me perguntando por que nós que temos autismo não conseguimos falar de forma correta. Eu nunca consigo dizer o que quero de verdade. Ao contrário, palavras que não têm nada a ver com nada escapam da minha boca.
Isso costuma me deixar bem deprimido, e eu não consigo deixar de ter inveja dos que podem falar sem o menor esforço.
Tente imaginar o que significa viver com esse tipo de limitação. Tente se imaginar querendo dizer algo, mas as únicas palavras que você consegue lembrar não servem para dizer o que você quer. O tempo todo.
Imagine ler uma história e não conseguir imaginá-la enquanto lê. Imagine-se tentando se comunicar e da sua boca só saem palavras aleatórias, que não têm nada a ver com o que você quer dizer...
Um rapaz autista, conhecido da Pandorga, teve exatamente essa dificuldade numa entrevista de emprego: “Eu queria dizer uma coisa e saía outra.” Como é que essa pessoa vai ser aprovada numa entrevista de emprego?
Você consegue se colocar no lugar de uma pessoa com autismo e imaginar como esses bloqueios no uso da linguagem dificultam toda a interação social?
A pressão para responder
As dificuldades com o uso da linguagem tem ainda outras consequências. Responder e tentar se comunicar podem ser atos extremamente estressantes para pessoas com autismo em qualquer situação de vida. No entanto, na escola, na faculdade e no trabalho a pressão é especialmente grande.
A professora, ou o chefe, pergunta uma coisa. A pessoa autista demora para responder e, quando fala, sai alguma coisa que não faz sentido. A professora não entende. E pergunta de novo. E de novo e de novo. A tensão aumenta e “palavras que não têm nada a ver com nada escapam da minha boca”...
Quem suporta conviver com esse tipo de situação, dia após dia? Por isso, muitas pessoas autistas desistem de contestar, de corrigir, de se explicar e entregam os pontos. Acabam concordando com tudo. Se tornam submissas e cordatas, admitem tudo, confessam qualquer coisa só para se livrarem dessa agonia.
Em países com maior tradição e experiência na esfera do autismo do que o Brasil, há um esforço muito grande para se identificar autistas que possam estar presos, em cadeias e penitenciárias, porque confessaram crimes que nunca cometeram.
O uso funcional da linguagem como barreira
Há ainda um outro aspecto no uso da linguagem pelas pessoas autistas que não colabora para uma boa interação social. Para muitas delas, a linguagem tem uso exclusivamente funcional. Ou seja, a linguagem serve para comunicar fatos objetivos – de preferência fatos relacionados ao interesse específico que elas têm −, não para conversar.
Como, frequentemente, elas não estão interessadas em se relacionar, a linguagem não serve para interação social. Muitas não conseguem imaginar o que é um bate papo, jogar conversa fora, falar sobre o tempo, sobre o último fim de semana, sobre o namorado da vizinha. Uma pessoa autista chamou essa conversa miúda de grude social e autistas não suportam grude social.
Falar ao telefone
Para Dominique Dumortier, autora autista que também já foi mencionada em outros artigos, o uso do telefone é bem complicado − como, provavelmente, para a maioria das pessoas no espectro.
Ela diz que não acha difícil usar o telefone em si, mas telefonemas podem gerar frustração porque, na maioria das vezes, são inesperados e as pessoas autistas têm dificuldades para lidar com surpresas. Elas gostam de ter tudo planejado, e ligações de outras pessoas, em geral, não são previstas no planejamento. Consequentemente, quando a pessoa autista recebe uma ligação, muitas vezes ela fica muito transtornada e confusa. Dominique conta que, quando recebe um telefonema imprevisto, às vezes entra em pânico e começa a ficar antipática. O ideal seria que pudesse saber de antemão qual vai ser o teor da conversa telefônica e quanto tempo a ligação vai durar. Mas ela mesma admite que esse é um desejo pouco realista.
Dominique explica que não tem problemas com chamadas curtas e profissionais, como, por exemplo, para marcar datas, porque neste caso o assunto é bem definido e não há desvios. Por outro lado, quando alguém telefona só para conversar é mais problemático porque aí não há definição nenhuma, os tópicos da conversa não são pré-definidos, podem surgir muitos assuntos diferentes e de forma totalmente aleatória. Dominique sente que tem uma certa resistência a esse tipo de ligação.
Veja o que ela diz sobre conversar com o namorado ao telefone e sobre a duração da chamada:
Com o meu namorado sempre combino com antecedência quando vamos ligar, e isso torna tudo mais previsível. Fico ansiosa se ele telefona mais tarde ou mais cedo. Portanto, prefiro ser eu quem telefona às pessoas, em vez de receber chamadas, porque assim eu posso, pelo menos, determinar o tempo. Se decido telefonar a alguém por sete minutos, e leva mais tempo, minha tendência é cortar a conversa. Mas, se as pessoas querem desligar antes do previsto, tento prolongar a chamada para poder terminá-la quando passarem os sete minutos. Se o meu interlocutor inicia um assunto inesperado, eu não sei o que fazer. A chamada tem de transcorrer de acordo com as minhas expectativas. O meu namorado sabe disto e colabora. Às vezes, sou muito difícil durante um telefonema. Ele diz, então, que vai me ligar de novo a uma certa hora, durante uns 15 minutos. Isso me acalma e me deixa satisfeita.
Os diferentes exemplos que vimos neste artigo dão uma breve ideia de como a dificuldade com o manejo da linguagem para se comunicar pode representar uma barreira à interação social das pessoas com autismo. Essa barreira será mais ou menos importante dependendo da pessoa e das suas limitações. De um incômodo no dia a dia, passando pela dificuldade de conseguir um emprego, até o encarceramento, as consequências podem ser “triviais” (para quem vê de fora) ou gravíssimas, causando sempre um impacto no bem estar da pessoa.
Não deixe de acompanhar as próximas publicações!
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