Neste artigo vamos tentar responder a esta pergunta: será que pessoas autistas realmente gostam de ficar sozinhas? Com esse objetivo, vamos olhar para o autismo como um déficit social; vamos olhar mais de perto para os tropeços e angústias das pessoas com autismo na esfera social, no âmbito da convivência com as outras pessoas.
É verdade que as pessoas autistas gostam de se isolar?
O que as pessoas pensam
A opinião corrente é que pessoas autistas não querem saber de convivência com outras pessoas. A visão geral é que, se chegar uma visita na casa, por exemplo, a pessoa autista vai correr para se esconder no quarto ou vai dar um jeito de sair de cena. Na escola, na hora do recreio, o estudante autista fica sempre pelas margens do pátio, sozinho, afastado das outras crianças – é o que, em geral, as pessoas pensam. E a explicação que normalmente se dá é que os autistas preferem estar sozinhos, que eles gostam de ficar no seu mundinho.
Mas.. será que é isso mesmo?
A resposta de um jovem autista
Veja o que diz Naoki Higashida. Quando tinha 13 anos, Naoki escreveu um importante livro sobre autismo, O que me faz pular. O livro é organizado em torno de perguntas e respostas. São dúvidas comuns que as pessoas têm sobre o autismo. Se você quer aprender sobre autismo, procure esse livro, pois vale muito a pena.
E, justamente, uma das perguntas que ele responde no livro é a seguinte: Você prefere ficar só?
Confira a resposta de Naoki:
“Ah, não se preocupe, ele gosta de ficar sozinho.”
Quantas vezes já ouvimos isso? Não posso acreditar que qualquer ser humano deseje mesmo ser deixado só. De forma alguma.
O que incomoda as pessoas com autismo é que nós ficamos muito ansiosos com o fato de causar problemas para vocês e deixá-los nervosos. Por isso é difícil para nós ficar perto de outras pessoas. E esse é o motivo para sermos deixados sozinhos com tanta frequência.
A verdade é que amamos ter companhia. Mas, como as coisas nunca dão certo, acabamos nos acostumando com a solidão sem sequer perceber como isso aconteceu.
Toda vez que escuto alguém comentar quanto eu prefiro estar sozinho, isso me faz sentir solitário demais. Sinto como se eles estivessem me dando um gelo de propósito.[1]
Parece que a ideia que se tem sobre pessoas com autismo preferirem o isolamento não corresponde exatamente à realidade.
Tipos de sociabilidade no autismo
Em 1979, décadas depois de o autismo ter sido identificado como um transtorno específico, a psiquiatra britânica Lorna Wing, uma das mais importantes pesquisadoras sobre autismo, descreveu três diferentes tipos de sociabilidade no autismo. Ela classificou as pessoas autistas em três categorias, conforme a vontade ou disponibilidade delas de se socializar.
Hilde De Clercq, especialista em autismo e professora da Pandorga Formação, explica esses diferentes tipos de sociabilidade:
Quanto ao quesito compreensão social, existem diferentes tipos de pessoas com autismo. [...]Muitos pais e profissionais acham que todas as pessoas com autismo são autocentradas, que nenhuma delas gosta de estar com outras pessoas. Mas sabemos que não é assim. E foi principalmente a psiquiatra infantil britânica Lorna Wing que abordou essas diferenças no espectro do autismo.
Temos as pessoas com autismo ditas retraídas: são mais reservadas, evitam contato visual, não gostam e têm medo de estar com outras pessoas e têm muitas dificuldades com interação social. Também poderíamos dizer que elas têm uma espécie de “pré-compreensão social”. Não é uma compreensão social real.
No espectro também temos o subgrupo de pessoas mais passivas. São as pessoas com autismo que desejam ou gostam de ter contato social, mas não sabem como tomar a iniciativa. E elas só são incluídas e fazem coisas com outras pessoas sob uma condição: que as outras pessoas tomem a iniciativa. [...]
E existe um grupo de pessoas com autismo que tem muitos comportamentos sociais ecolálicos. Lorna Wing chamou esse grupo de ativos, porém estranhos, e é um grupo grande. No passado se pensava que todas as pessoas com autismo eram retraídas, mas hoje se sabe que o grupo ativo, porém estranho é o maior dentro do autismo. Este é o grupo de pessoas que tentam nos entender, que gostam de brincar com outras crianças, de estar com outras pessoas − desde que não seja demais, é claro. Mas, para compreender, elas tentam imitar as pessoas neurotípicas, podem ter comportamentos ecolálicos, e é por isso que são chamadas de ativas, porém estranhas. Elas querem pertencer, fazem atividades como nós, se envolvem em conversas, mas como nem sempre entendem o que está acontecendo, elas imitam. E às vezes imitam o comportamento errado. É por isso que parecem ser um pouco “estranhas”.[2]
Veja o exemplo de um menino autista que foi ensinado a dizer “oi” e dar um beijo quando viesse visita. Ele aprendeu que dar um beijo nas pessoas é bom. Agora, sempre que sai na rua, ele quer beijar todo mundo. É um comportamento ativo, mas, ao mesmo tempo, estranho: um comportamento social ecolálico.
Mais tarde, Lorna Wing acrescentou às três categorias anteriores um quarto grupo que foi denominado hiperformal e empolado. É o grupo de autistas que apresentam uso adequado da linguagem verbal e capacidade cognitiva preservada e que costumam ter bom desempenho no trabalho. São polidos e convencionais. Nas relações familiares, muitas vezes, não têm espontaneidade e empatia. Ficam exageradamente focados nos seus próprios interesses, com total desconsideração pelos interesses dos outros. No âmbito da família, podem ter descontroles quando há interrupção da rotina, mas são educados no ambiente de trabalho. Muitas vezes são considerados excêntricos.
Voltando à questão inicial − é verdade que pessoas autistas gostam de se isolar? – vimos que a resposta não é tão simples assim. Lorna Wing ajudou a colocar uma certa ordem no cenário, fazendo a distinção entre 3 e, mais tarde, 4 grupos.
Quem convive com pessoas autistas, com certeza percebe uma grande variedade de atitudes e de jeitos de ser. Com certeza percebe também o que parecem ser muitas contradições.
Fique atento aos próximos artigos onde vamos nos aprofundar um pouco mais neste mundo que parece ser confuso e contraditório para tentar entendê-lo melhor.
[1] Trecho do livro O que me faz pular, de Naoki Higashida.
[2] Recorte do curso A comunicação expressiva no autismo, com Hilde De Clercq. Módulo Dimensões da Comunicação: a forma. Aula 7 - Resumo: o pensamento no autismo e o pensamento neurotípico
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