Todas as pessoas com autismo, de uma ou de outra forma, desenvolvem estratégias para sobreviver socialmente no mundo neurotípico. A principal estratégia das pessoas autistas inteligentes é aprender convivência social cognitivamente; ou, conforme declarações de duas pessoas conhecidas, “aprender como se aprende matemática”, ou “aprender cientificamente”. É isso que vamos ver neste artigo.
Pessoas autistas e a convivência social: um aprendizado cognitivo
Sem intuição é preciso criar regras
Em artigos anteriores você já foi apresentado a Dominique Dumortier, uma autista belga que nos ensina muito através do relato de suas próprias experiências. Citamos mais uma passagem do livro dela no qual ela fala sobre seu aprendizado de convivência social:
Não consigo lidar com contatos esporádicos. Todos os meus comportamentos sociais foram aprendidos, visto que eu não tenho esse tipo de conhecimento intuitivamente.
Progredi muito neste aspecto (principalmente estudando Ciências Sociais). O que as pessoas adquirem naturalmente, eu tenho que apreender intelectualmente e memorizar.
O que para os outros é intuitivo, eu tenho que traduzir em regras, do mesmo modo que se aprende matemática.
Como ela é autista, nasceu com o instinto social desligado e, por isso, não assimilou instintivamente as normas de conduta aceitas pela sociedade.
Se a pessoa não assimila certo conhecimento que deveria ser instintivo, ela precisa aprendê-lo assim como se aprende, por exemplo, a tabuada. Digamos que ela aprende: “quando me dão alguma coisa, tenho que dizer ‘obrigado’”.
No cérebro dela isso é transformado numa espécie de fórmula matemática, como, por exemplo, “6 x 8 = 48”. E toda vez que alguém lhe dá alguma coisa, ela busca na memória a fórmula “6 x 8 = 48” e diz “obrigado!”.
Vamos imaginar um estudante autista na escola. Quando chega na sala de aula, ele já sabe: nesta professora tenho que dar um beijo e um abraço, “3 x 4 = 12”. Está gravado: “Eu detesto, mas se eu não fizer, a professora vai se chatear” e ele puxa da memória a regra “3 x 4 = 12” que significa “dar um beijo e um abraço na professora”.
O professor de educação física não quer beijinho e abraço, só bater a mão: “7 x 5 = 35”.
E quando ele vai na casa da avó, é “5 x 6 = 30”: sentar no colo.
Assim, com o tempo, ele vai aprendendo outras regras: “6 x 4 = 24” − não pegar a sobremesa do outro; “4 x 9 = 36” – não tirar a roupa em público; “3 x 7 = 21” – respeitar o espaço da outra pessoa; “8 x 5 = 40” – não interromper uma conversa. E assim por diante.
É muito complicado! As situações sociais são inúmeras e muito imprevisíveis. Como é que ele vai transformar todas elas em fórmulas? Não existe a menor possibilidade. E se ele não for um gênio, uma pessoa com uma inteligência acima da média? Vai se atrapalhar porque não sabe essas coisas intuitivamente.
Tudo isso não é invenção. É a árdua realidade cotidiana das pessoas com autismo.
Regras para o contato visual
Vamos ver o que diz Marc Segar, um autista muito inteligente que escreveu um Guia de sobrevivência para portadores da síndrome de Asperger, com mais de 200 páginas de regras de comportamento social bem detalhadas para pessoas com síndrome de Asperger. Esse guia pode ser baixado gratuitamente na internet. Estas são algumas das recomendações que Segar dá aos seus amigos com síndrome de Asperger sobre o contato visual:
É difícil dominar o contato visual, pois é difícil perceber se você está fazendo muito ou pouco contato visual com uma pessoa enquanto ela fala com você.
Se você estiver conversando com alguém, e falando sobre outra pessoa que se encontra no ambiente, é melhor você não ficar olhando para essa outra pessoa, porque ela pode perceber isso e sentir-se desconfortável - talvez até comente isso com outros, sem que você saiba.
Controlar seu olhar pode ser muito difícil para você, mas não é de forma alguma impossível.
Se você está conversando com alguém sobre outra pessoa e, além de olhar, você ainda aponta para essa outra pessoa, isso pode ser entendido como uma atitude muito agressiva.
De um modo geral, tente não apontar para as pessoas, isto manterá você longe de problemas.
Quando você estiver conversando com outras pessoas, ou elas estiverem falando com você, é esperado que você as encare, tendo em conta as seguintes orientações:
Olhar para alguém por menos de um terço do tempo pode comunicar que você é tímido (se mantém o olhar para baixo) ou desonesto (se mantém o olhar para o lado).
Olhar para alguém por mais de dois terços do tempo pode comunicar que você gosta desta pessoa (se olhar para seu rosto como um todo) ou que você é agressivo (se você olhar fixamente para seus olhos).
Olhar alguém o tempo todo, com um firme e ininterrupto contato visual, pode comunicar duas coisas. Ou você a está desafiando (o olhar agressivo) ou ela o atrai (o olhar íntimo).
Como manter todas essas regras em mente na vida cotidiana?
Pessoas neurotípicas dificilmente conseguem imaginar que seja possível viver dessa maneira. O que elas podem imaginar é um filme de ficção científica com um enredo mais ou menos assim: um habitante do planeta Terra viaja para outro planeta, onde vivem seres diferentes dos humanos; ao chegar lá, ele recebe um manual que ensina como deve se comportar quando interagir com os habitantes daquele planeta. Bem, pessoas autistas não vieram de outro planeta, mas muitas delas vivem com uma sensação muito parecida com essa e se veem tendo que aprender regras para conseguir conviver com os habitantes neurotípicos.
Copiar para sobreviver socialmente
Também temos o depoimento esclarecedor de Márcia Machado. Ela trabalha numa grande empresa multinacional de software e se reconheceu como autista quando o filho recebeu o diagnóstico. Num depoimento que nos concedeu, Márcia falou de suas estratégias para sobreviver socialmente no mundo das pessoas neurotípicas.
São basicamente duas estratégias:
ela estudou e sabe muito sobre comportamento humano;
ela observa e copia.
Márcia explica o seguinte:
Eu copio muito comportamento. Muito. Às vezes, eu me surpreendo com coisas que eu faço diferente. Daí eu descubro por que as pessoas ou riram ou comentaram. Normalmente, as pessoas acham engraçado. Quando elas acham engraçado, eu já sei que fiz alguma coisa diferente. E aí que eu vou descobrindo. Quando as pessoas dão risada, eu vou descobrindo: “Ah, tá, então da próxima vez eu já sei o que eu tenho que fazer. E isso foi desde pequenininha. A professora, os coleguinhas, iam fazendo associações e aí eu fui assimilando que aquilo não era uma reação comum. Então, eu imitava a reação comum. Então, agora, com 41 anos, eu passo, tranquilamente, como uma pessoa neurotípica.
O preço da convivência social
Dominique Dumortier, Marc Segar e Márcia Machado são exemplos de pessoas autistas que conseguem lidar com o mundo social neurotípico porque têm um bom QI, têm boa capacidade cognitiva, são capazes de estudar Ciências Sociais, de entender os mecanismos do comportamento típico, de transformar os comportamentos em fórmulas, de memorizar essas fórmulas e aplicá-las – ou copiar comportamentos típicos − com maior ou menor êxito.
Os 36% de pessoas autistas que não tem essa mesma capacidade cognitiva, que têm um QI mais baixo, não conseguem fazer isso e saem bem mais prejudicados pelo “déficit social” que é o autismo.
Porém, mesmo para as pessoas autistas inteligentes, as estratégias para conviver socialmente cobram um preço que as pessoas neurotípicas não conseguem imaginar.
Pensem no trabalho que os leitores de Mark Segar precisam realizar para se adaptar permanentemente às normas do controle do olhar no mundo neurotípico.
E pensem na ressaca social relatada por Márcia Machado. Primeiro Márcia afirma, com justo orgulho, que aos 41 anos, passa tranquilamente como pessoa neurotípica. E quase no mesmo fôlego, acrescenta:
Agora, o esforço que eu tenho pra fazer isso é brutal. É uma coisa de chegar em casa, me jogar na cama e ficar deitada por horas. E, dependendo da interação social que eu tenho, eu fico de ressaca social por dias. E não é brincadeira. Eu fico mesmo. Dias. Tenho que ficar deitada, isolada, no máximo assistindo um filme, longe de pessoas, de barulho, na minha casa. E isso acontece com muita frequência. Sempre tem alguma coisa que envolve muita gente.
Dulce, professora do ensino fundamental, se descobriu autista aos 60 anos de idade. Ela também fala das dificuldades da convivência social, das estratégias de sobrevivência e da ressaca social:
Em aula tenho dificuldade com barulho. Mas tento lutar contra isso. Qualquer ruído me tira do ar e é insuportável a ponto de eu sentir náuseas e dor de cabeça. A sala dos professores nem se fala. Festa com música e aglomeração pior ainda.
Quando tenho que ir a eventos e formações, eu enfrento. Mas procuro sentar só e, depois que acaba, chego a ficar dois dias de cama. Festinhas da escola com as crianças eu faço, pois sei que é preciso, mas já planejo para sexta para depois poder ficar dois dias no silêncio.
Quando meus filhos eram pequenos, eu no final do dia pedia uma hora para eu me recuperar do dia, para depois conversarmos.
O problema é que os anos passam e está sendo desesperador para minha cabeça tudo isso. Até me mudei para um sítio para não escutar o barulho e o som dos vizinhos.
Pessoas como Dominique, Marc, Márcia e Dulce não são personagens de filmes de ficção. Estão aí, ao nosso redor: são filhos e filhas, alunos e alunas, vizinhos e vizinhas, colegas de trabalho – com autismo.
Temos que ficar atentos, saber que essas pessoas estão aí e que precisam de apoio para minimizar os efeitos negativos da convivência social e para suportar a ressaca social.
Fique atento à publicação do próximo artigo!
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